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Álvaro Santi - Músico - Escritor - Porto Alegre/RS

Poesias Publicadas

De "Luta+vã" (Libretos, 2012)

Cantiga de amiga



Eu tentei pedir a ela, minha amiga,
que não lesse esse poema ao pé da letra.
O mais belo dos meus versos não seria
mais que espuma sobre o mar que uma tormenta
doce insufla, sem remédio ou serventia.

Se eu às vezes lhe admiro a independência
e, de longe, comemoro suas conquistas,
nem por isso indiferente à sua desdita
posso ser, nem ao seu charme, à sua nobreza.
Como faço para entrar na sua vida?

Em meu peito se misturam sentimentos
que a razão reputa os mais contraditórios.
Amizade, amor, piedade vil, respeito...
transparecem claramente nos meus olhos,
todos eles e um incômodo desejo

consentido, mas deixado à própria sorte,
pra que morra sufocado entre os deveres
cotidianos, pra que a paz dos justos reine
sobre o tédio. Eu já sei, não somos deuses,
nem tampouco somos santos. Bem mais fortes,

nós lutamos contra a própria natureza.
E com fé ou sem, seguimos a fitar
o horizonte, perseguindo aquela estrela
que ao final revelará ser aparência,
ou o dedo do Senhor a nos julgar.

Con Anima



Que posso eu cantar de novo?
Salomão já fez os cânticos.
E o Outono, entretanto,
vem cobrando seu tributo:
quer sempre mais e mais frutos.

Sei que o Inverno já vem,
futuro exato, esperado.
Mas eis que brota, entre as pedras,
a mais teimosa das ervas
que nem a neve contém.

E tu, Primavera fresca,
vens inaugurar o espanto
e erguer, com ares de anjo,
novo castelo de vento
sobre as pedras da represa,

em cujas águas contidas
eu me vou banhar agora,
pois é verão. Quem se importa
se haverá outros ou não,
se é de ti que sopra a vida?

Soneto XXIII (Da luta mais vã)



Faço versos de amor até mais tarde
e fico deprimido de manhã.
Mistura-se ao cansaço a saciedade.
Sou o bagaço da “luta mais vã”.

E à cotovia ou rouxinol que acaso
me venham com seu canto despertar
perguntarei se terão avistado
a minha amada, quando, em que lugar?

De perguntar em vão exausto, enfim,
retornarei à torre de marfim
onde aguarda meu amor o seu leito

de morte. Onde o meu verso, porém,
encontrará seu metro, muito além
dessa amada, das palavras, do tempo.

*Publicado originalmente no Jornal do Comercio. Porto Alegre, 26-28 abr.2002. (Caderno Viver)

República



Na Rua da República, respiro
a minha juventude sob as copas
de cem jacarandás ainda floridos.
Acima deles todos, entrevejo
meu velho apartamento de aluguel.

Foi lá que amei alguém como a mim mesmo
– pensando bem, de fato, um pouco mais –
num tempo em que pensava que a verdade
em cada pensamento meu morava:
por insignificante que ele fosse,
devia, pois, ser dito a qualquer preço.

E assim como os sobrados, que ano a ano
deixaram esta rua para sempre,
surgindo em seu lugar tristes caixotes,
também muitas verdades vão sumindo,
e murcham como as flores arroxeadas
que arrasta na sarjeta a água da chuva.

*Publicado na revista Porto & Vírgula. Porto Alegre, Unidade Editorial SMC, n° 46, 2002.

Requiem para uma bailarina



I.

Não pronunciarei a palavra corpo,
Por ser óbvia.
Estarei absorto
Enquanto te moves.

Não direi que és leve,
Que esperança!
Pois se cada passo teu inscreve
Fundo golpe, me balança.

Sequer em dança penso,
Quando vejo em ação teu vulto.
(Mais que o vulto não vemos,
Eu e o mundo.)

Nada mais do que esta sobra
Levarei comigo, enquanto posso.
Cada vez que tu te movas,
Contigo irão meus olhos.

II.

O que eu sempre quis foi imitar
A dança das árvores ao vento:
Usei dedos, palavras, luar,
Voz de crianças, chama ardendo...

Também as ondas sonhei copiar
Com ternura, no exato momento
Em que explodem, mil gotas no ar
Logo de volta ao mar, escorrendo.

Em vôos mais altos eu quisera
Captar os astros em movimento,
Compreender sua imutável norma.

E, por fim, a derradeira mestra
Foi a nuvem inquieta, querendo
Em vão a definitiva forma.

III.

Dançam as palavras ao meu comando,
Leves como seus pés sobre o tablado,
Palavras que uma a uma vêm chegando,
Atendendo das outras ao chamado.

Assim seus pés convocam outros pés
A imitá-los: instante supremo
Em que a dúvida é prazer. Um momento
Pra bailarina, pro poeta dez,

Vinte minutos... Ainda ignoramos
Que direção vão tomar os seus passos
Ou como vão se enlaçar as palavras.

Por sorte nosso mundo não acaba:
Permanece a dança restrita ao palco,
Limita-se o poema ao dicionário.

*Publicados em Dall´Alba, Eduardo (org.). Miriam Toigo: uma bailarina brasileira. Caxias do Sul, Ed. São Miguel, 2002


14/10/2012

 

 


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