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Álvaro Santi - Músico - Escritor - Porto Alegre/RS

Poesias Publicadas

Viagens de uma caneta por meus estados de espírito (UFRGS, 1992) - Texto integral

* * * * *

Profissão

Me escrevo torto,
endireitando alegre as linhas
tortas do que trago:
saber e saudade.

Me explico um pouco
tenso, por escrito,
não sei se honesto
ou teatral-pálido.

Me canto suave,
cercado de ruas e pores-de-sol,
molhado de pranto
até os ossos.

Me lanço ao mundo,
o rosto ao vento,
ou tropeçando em versos,
aflito: vivo!

* * * * *

Caminhamos, na chuva,
e nossos sapatos deixam marcas
de saudade na calçada suja,
por entre os prédios antigos
que teimamos em chamar belos.

Tão jovens, ainda,
e os corações, velhos,
acorrentados ao passado.
Que será de nós, quando nossos filhos
morrerem de saudade desses viadutos?

* * * * *

Contemplar daqui o céu
Sentir saudades do mar
Arrumar a casa devagar
Ouvir o Chico cantar
Queijo com doce de leite
Te beijar quente de manhã
Conversa em mesa de bar
Um violão até o sol sair

* * * * *

Extraio a forma do nada:
não sou acaso um deus?
A morna paisagem que alucina
as massas só a custo me contamina.
Somente passa, longe de meus
versos debruçados na vitrina
que exibe minhalma penada.

Do real faço adereço
de meus sonhos, pano de fundo
da trágica aventura do momento,
da louca vida, do fugaz lamento.
Para que conhecer o mundo,
se já o contém meu pensamento,
desde o fim até o começo?
Todo Dia um Poema

* * * * *

Todo dia nasce o sol
Um poema escrito num lençol
Enfeita o edifício

Todo dia levantar
Um poema novo a decifrar
Sobre o precipício

Todo dia o mesmo sonho
Um poema é enfadonho
Como um comício

Todo dia é recriado
Um poema tão delicado
E mesmo assim um desperdício

Todo dia é de trabalho
O poema é ato falho
Alheio a qualquer ofício

Todo dia exige o sono
Um poema é abandono
Na insensatez rumo do hospício

Todo dia é de mentira
Um poema é que retira
O fogo do artifício

Todo dia um novo poema
Um poema novo a cada dia
Toda a gente vai ao cinema
E sai pensando como seria
Viver se viver fosse um vício

* * * * *

Dá-me um pouco de mentira, ó sereia,
um pouco de ilusão na veia, um mito
qualquer dos teus: é tudo que reclamo,
mulher, somente um maldito grão
de areia no deserto ardente e vão
onde ando, aflito, procurando a mais feia
rima para um bonito verso, desafiando
a ira infinda do universo inteiro. Contudo
não me fira, ainda, de cima, a inclemente
e linda mão de um deus matreiro e perverso,
louco que atira certeiro, sem que eu saiba
ao certo quando, para que em meu rouco grito
caiba o que se esconde eternamente, o que jamais
foi dito à ceia, de repente: – eu te amo!

* * * * *

Rondeau

O tempo passa, as horas voam...
ou será o tempo pirraça
dos sinos loucos que soam
em teus abismos – aqueles
que o poeta canta? Onde, eles?
Em vão procuras... Não vês?
São teus demônios que crescem,
enquanto desce a mais escura
noite, nos abismos do poeta.

O tempo passa, as horas voam...
ou será o tempo desgraça
que uns poucos relógios amontoam
sob os véus que ainda temos,
mesmo quando os escondemos
para em vão detê-los?... Não crês?
São teus hormônios que procuram
a mais pura forma de fazê-lo,
à noite. Ainda não esta... – Mas quando?!

O tempo passa, as horas voam...
ou será o tempo couraça,
para que roucos gemidos não doam
mais em Deus, ou em nós, tolos?
Se não há na vida consolos,
e em vão tentamos ser fortes, não dês
atenção a teus neurônios cansados:
mais ousado é encontrar a morte
à noite, a sós, numa bala perdida.
O tempo passa, as horas voam...
ou será o tempo trapaça,
e a noite mais do que... fumaça?

* * * * *

Diretas Já

No comício estava eu gritando eu
a multidão e eu a carestia a inflação
a multidão sabia que tu estavas
na multidão e te achei
na multidão um dois três as bandeiras erguidas
quatro cinco mil os punhos erguidos
os gritos erguidos queremos queremos
queremos...
eu deslumbrado ali e de repente
tu desaparecida ali novamente
na multidão
o ilustre senhor deputado falava tudo o que eu já sabia
eu sabia de tudo
e não precisava nada para viver simplesmente
nem do sinal vermelho
dos abrigos de ônibus
das bibliotecas
do relógio da praça que dava também a temperatura
o senhor governador não disse nada da minha tesão
os cartazes não diziam nada da minha tesão
e tu também não sabias
mas também eu desapareci o povo está cansado
perdi minhas palavras
no suor dos corpos reunidos o povo está preparado
e me tornei somente mais um
e todos o povo está unido
o locutor das diretas falava
os senhores oradores todos extasiavam-se
o papel picado descia devagar dos edifícios
eu queria que tudo o mais desaparecesse
para te amar ali mesmo à luz da lua cheia fantástica
filtrada através dos galhos das pitangueiras
que há muito tempo haviam desaparecido

* * * * *

Flash

Foi ali.
Teu furor se foi, por ali.
Num instante, qual bofetada,
se foi.
O mendigo bêbado escorregou na calçada
e caiu,
esparramando farelos de pão sob o viaduto.
Chovia...
esparramando farelos de água por toda parte.

* * * * *

Concerto para Prefeito, Chaminé e Orquestra de Canos de Descarga

Ai repara só no olho olhar daquela moça
aquela poça
vontade de sorrrrrrrrir por detrás dos óculos
de aros redondinhos

Centro de Porto Alegre calçada esburacada
farto exercício de estupidez humana
um muro - às vezes dois - esconde um rio/lago
imundo como todo mundo em volta
mas ainda belo quando encrespa espuma
entusiasmado pelo vento sul - sua paixão!

Rua alagada mês de agosto chuvoso
nadam animais encouraçados em automóveis - arma moderna
cego oferece loto no escuro
criança vende lixa para pés amendoim torrado
primeiras palavras que mal aprendeu falar

Centro de Porto Alegre cidade medonha
vinte trinta andares e ainda fede
aqui em cima precisamos de um novo aparelho de ar condicionado
e um cínico helicóptero brinca de esconde-esconde
entre os edifícios que crescem
se espremem se olham aborrecidos

Centro de Porto Alegre ou qualquer outra
urbanidade dessas para impressionar qualquer outro
homem comum brasileiro pobre
semelhante estranha múmia que dorme na soleira
e acorda outro dia às vezes
precisamos também de mais viadutos para abrigar mais gente

Centro de Porto Alegre calor mesmo
só dentro de algum coraçãozinho novo
espiando as vitrinas da Rua da Praia
será deste coraçãozinho-bomba-atômica
que precisamos para explodir tudo tudo
e começar de novo a construir casinhas
cercadas de flores enormes
soltando pela chaminé uma inócua fumacinha?

* * * * *

A Terceira Pessoa

Penso que sorrias,
enquanto eu mirava
um par de céus azuis
(tons de diferentes dias):
teus olhos. Onde pus
aquela voz, que jurava
ter dito: "...para sempre"?

Vês que espero, agora,
o poeta que saiu de casa
à tua procura, tonto,
não sei que estrada afora.
Cansado, nalgum ponto,
tem o peito em brasa,
e quer a chuva fresca.

Claro que dormias
quando ele te chamava,
à janela. (Um raio de luz
riscava, em doce folia,
estrelas em teu rosto.)
A cruz que a toda parte leva,
este anjo, ele o faz por mim.

É certo que o inventei,
em boa hora, dei-lhe asas
para te buscar, e permissão
para sofrer por mim à vontade.
Ele chora, ou ri, e eu canto,
moro em muitas casas,
todas cheias de ti.

* * * * *

De novo o copo
e a meia-noite-luz
meia noite e meia luz
o som do corpo e vento nenhum
longe o mar e eu
que paz?
De novo a tinta e o papel
De novo a chaga aberta
a volta do barco
que me levava além de mim

* * * * *

Uma vez criança,
fugirás de um seio,
pela porta da frente da casa.
E virás pro mundo.

Uma vez na estrada,
descobertas: só olhar prá frente
e não querer
além do horizonte.

Uma vez sozinho,
voltarás teus olhos,
procurando o berço de tudo,
e não verás além dos próprios...

passos.

* * * * *

Atravessado

Um ser volúvel entornado pelos cantos da sala
empilha nomes de mulheres,
compõe miragens, reflete
palavras definitivas de volta ao espelho,
de onde brotam seus monstros cotidianos,
empanturrados de momentos felizes
ainda não vividos.


Um ser deserto encostado à parede nua
aguarda inquieto a luz do sol
que virá banhar-lhe o rosto,
o mais tardar até às seis horas.
Porque afinal é verão,
e temos de acordar bem mais cedo
para sermos felizes.

* * * * *

Para Além de meus Olhos Tristes

Ando pelas ruas de minha infância.
Na cidade-noite, silêncio e perfumes.
Reconheço flores e esquinas,
ando descalço e assovio...

Só temo os cães, que não me entendem.
Latindo, acordam seus vizinhos,
para me dizerem em coro: por que
não estás em casa, como nossos donos?

Tudo é igual por trás de suas portas
fechadas, por trás de seus jardins
cercados, onde não há crianças brincando
agora, porque é tarde. Tudo igual...

Por trás de meus olhos, do silêncio,
dos perfumes, por trás das esquinas.
Tudo é igual, também,
para além de meus olhos tristes.

E imagino que irá acontecer
alguma coisa estranha, anormal:
um cometa, uma guerra, um desfile!
Eu só queria ver o povo livre nas ruas...

* * * * *

Esboço

Teu corpo branco
neve lírio
Teu rosto canta
santa

A calma é tanta
depois da lua
Teu gesto encanta
surpresa

A voz de espanto
presa
a teu corpo branco...

* * * * *

Canción para Olvidar

Para esquecer-te inteiramente,
há de cumprir-se um século,
até que meu corpo se complete
com os pedaços do tempo morto
que ando a juntar pelas ruas.

Para julgar-te perdida, é preciso
que me torne ainda mais cego
e preso em meu dia azedo,
e crente no silêncio teu
que anuncia um fim-do-mundo sem graça.

Para extinguir-te, musa vampira
da noite fria e branca,
acabo queimando esta casa,
e os poemas todos que guarda,
e o eco dos teus perfumes.

Porque na certa, enquanto ando,
não penso em ti, pelo mundo.
Só as tocas do conforto é que me dizem
que estiveste ali, ainda ontem,
a preparar-me a cama com doçura.

* * * * *

(Re)descoberta

Pele:
intangível espaço, mas buscado.
Jorra, sem adjetivos.
Palavras, correndo de um lado a outro,
formigas tontas,
do coração ao cérebro carregam,
do cérebro ao coração, incansáveis
definidores das coisas todas (deuses-ditadores?)
que empacotam sensações em caixotes-conceitos,
classificados segundo origem,
objeto e literatura de referência...

– Pára!
(da capo) A pele,
tão suave... E resiste
ao vagalhão de idéias, metáforas
de vidas incompletas cuspidas,
inutilmente,
sobre corpos nus.

* * * * *

Requiescat in Pace

Às quatro e meia da tarde,
um infinito minuto suspenso em meu relógio novo.
E eu querendo fugir, de novo,
pois você quer entrar, pela janela.

Às quatro e meia da tarde, eu olho em torno:
tudo em seu lugar,
querendo compor um não,
para você não entrar, ao menos por agora.

Às quatro e meia da tarde, volto ao trabalho,
tranqüilamente confuso, como de hábito,
(ou confusamente feliz) e espero
que você vá embora, para sempre.

* * * * *

Dezoito Horas

Teu futuro é um bigode
Assina o cheque no capô do carro
Enche o tanque são dezoito horas
Não nasceste em lugar nenhum

Teu futuro é o relógio
A meia suja e os cabelos na pia
Os filhos que terão seus filhos
Que terão seus filhos que terão...

Teu segredo é o rosto sereno e vazio
A tranqüila consciência vazia
De quem já tem a opinião formada
Vazia desde sempre

Tua voz é o silêncio
Não tens medo de quase nada
Que o progresso possa trazer
A fumaça escura esconde teu grito

Teu riso é um pouco soluço
Uma gorda indecente lágrima
Que não cai para não estragar
Tua gravata mas tua gravata chora

O passado é uma barata tonta
Na terceira gaveta da tua ilusão
Onde guardas também um retrato
Tanto tempo faz...

* * * * *

Graffitti I

Já não sonho mais
com a canção perfeita
que seriam a tua e a minha vidas,
numa só vida,
reunidas.

* * * * *

Graffitti II

Nossos castelos de sonho
Estão no passado
No futuro está apenas
Nossa vontade nua
Desamparada e livre

* * * * *

Nunca fiz poesia
sobre a paz, a guerra,
e as estrelas dos teus olhos,
e as fagulhas dos meus órgãos.
Cuspi sempre estas palavras,
sobre esta folha branca,
a mesma folha branca,
sempre ainda branca, diante de mim.

Nunca quis dizer que amo
um guerrilheiro sandinista,
uma pálida artista de cinema.
Baralho, apenas, sem descanso,
as mesmas cartas,
sempre as mesmas cartas,
que me dão tantas sortes
diferentes sobre a mesa.

Nunca vi, nestas palavras,
indolente expressão de arte,
poderoso manifesto de pensamento
erudito, sensação carnal, ou consciência
de classe. Vou vivendo, sempre,
o mesmo amor, o mesmo vácuo:
um gosto amargo em cada obrigação covarde,
um grito louco querendo ser felicidade.

* * * * *

Morte à Imaginação

Vestidas de indiferença,
elas me olham,
do outro lado da parede
vítrea, que nos separa:
mistério, mulheres...
Por que não podemos ver
apenas aquilo que é?

* * * * *

Antissoneto

Embriagar-te de versos?
Para quê, se já me tenho a mim embriagado,
verborrágico ainda que sozinho,
escutando a música das esferas celestes?

Para quê, ó deusa, dedicar-te este vil poema,
nascido nas sombras de um ser fechado,
reles criatura inda que, de resto,
aposto em fino papel, e de tão bem pontuado texto?

Não, não dou a ti estas palavras,
que delas já me vejo farto.
Só o que escrevo é o que não mais desejo,

e o que não ousei.
Por vergonha ou por maldade
não te dei, e dei ao vento.

* * * * *

Dança, ó bailarina, entre os meus dedos
ávidos de encontrarem teus segredos
e serem, como meus olhos, sábios,
sobre teu seio, sobre teus lábios.

Dança, ó pequenina, entre os meus dedos
hábeis, para espantar os medos
e sermos, como em meus sonhos, juntos
enquanto vivos, ou quando defuntos.

Dança, me ilumina com teus dedos
rápidos, para adoçar os mais azedos
seres, mesmo aqueles desumanos,
meus amigos discretos, e os insanos.

Dança, minha menina, entre estes dedos
frágeis, e deusa de todos os credos
serás, como já és em meus versos rudes,
se és sincera, ou se me iludes.

Dança, e me desatina com teus dedos
cálidos, pois só inventando enredos
somos felizes, mesmo os mais trágicos,
sejam verdadeiros, sejam mágicos.

* * * * *

Noite

Lua –
meu relógio predileto,
sempre atrasado.

Nua –
teu vestido favorito
é sempre a pele.

Rua –
minha casa preferida,
sempre aberta.

Tua –
minha rima mais bonita
é sempre tua.

* * * * *

Soneto I

Uma desgraça espreita no meu dia, e morde
as pontas de meus dedos, entre os lençóis brancos:
saudades de um tempo de humor e de arrancos,
que some na poeira, atrás de um velho Ford.

Lá se foram, dias da feliz ignorância
que embebe as flechas da ironia juvenil:
do mundo adulto me contemplam mais de mil
olhos frios, que receio, mesmo à distância.

Crescer, tento explicar a mim mesmo, é esquecer de
tudo que já fui, ainda que somente em bruma:
pintar-me de cinza, para ocultar o verde

rosto que da infância trago, sem ruga alguma,
(quem sabe, logo, um filho nascerá que o herde)
e decretar-me o início da velhice, em suma.

* * * * *

Festim

À noite,
os homens se reúnem
para espantar
os pequenos duendes vestidos de medo,
que andam soltos
à noite,
e para conjurar seus próprios demônios.
Enquanto cantam e dançam,
os homens espantam
o infinito silêncio da noite,
esta língua que jamais entenderão.

* * * * *

José e a Mulatinha

E agora, José?

Agora, pega teu par de asas
e voa, até o alto das colinas,
as sete colinas de Roma
(que na verdade eram oito, mas uma
as pedreiras comeram)
e procura.

Lá em cima, José,
Sócrates conversa com Platão.
Suas longas barbas caem e se enroscam no chão
– Cuidado para não tropeçar, José!
Mas acho que me enganei, perdão,
devia dizer Atenas, e não Roma...

Enfim, José, agora é tarde:
escuta com atenção suas sábias palavras.
Sócrates está dizendo que o amor é pura contemplação
da Beleza (com maiúscula, hein José?!) em si mesma,
da qual participam todas as cousas mortaes.
Todas, viu, José?
Inclusive aquela mulatinha toda dengues,
que arrasta a asa pro teu lado,
te olha por baixo do véu de missa.

Ouviu, José? Simples beleza mortal, não te aflija
o seu corpo da cor do barro do Corinto,
o cheiro das pitangas que nascem nas florestas quentes do Sudão.
Contempla-a, e sê feliz, encontrando,
acima dela (não, José, nada a ver com seus cabelos negros),
a Beleza (sempre com maiúscula, José) Divina,
a qual te dará, se não se enganam estes senhores,
o supremo, duradouro prazer, imperturbável.

Repara, José, estes homens tão sérios e barbudos,
a decifrarem calmamente os problemas da humanidade
(não é pouca coisa, hein José?),
enquanto te desesperas por uma simples mulatinha,
tão gostosa, concedem eles,
mas mortal?!
Francamente, José, vê se te emenda!

* * * * *

Velas

Ardente corpo
Vela
Ardente chama
Minha vela titubeia
A vila dorme
E minhalma passeia por aí
Meus olhos se velam

Velo
Por outros olhos velados
Deste instante, noite
Velho dia, vê-lo morto
Velado, como ontem
Suspiros que se evolam
do peito das meninas

Vê-las, agora, cada uma
Em cada quarto
Sem mães que as velem
Velejo um corpo
E solto
As velas

* * * * *

Ah estes seres urbanos:
todos querem parecer úteis,
andando à toa pelas ruas.
E como são fúteis, afinal,
vistos sob a luz quente
e crua das luminárias.
Quando passam os anos,
e suas lutas diárias,
tão urgentes, seus planos
e as frutas doentes caem,
inúteis, no quintal, os panos
quentes não encobrem
os danos, o mal dessa gente.

* * * * *

Entardecer

Um crescente frágil,
suspenso sobre a franja de luz
que resta do dia,
atrai olhares de pontos distantes,
na terra que, súbito,
se vê precipitada, perdida
no universo vivo da noite.
As janelas e as estrelas
comunicam-se discretamente
com sinais de luz.
Deus boceja,
e os homens seguem seu destino.

* * * * *

Soneto II

Mármore, coração absurdo e belo!
Vida inteira chorando se, contudo,
estas faces dos homens, em que o selo
do padecer é um testemunho mudo

que as torna iguais e infinitamente
sábias, eu contemplasse, sem mais ter
cuidados com a minha própria mente
que, de resto, revolve seu saber.

Alma de borracha, sempre sozinha
estarás, nos sonhos meus, quando cobres,
como manto e bálsamo, a dor mesquinha

que desespera as intenções mais nobres.
Meu corpo, reles brotação daninha,
é preso ao chão, de solo e seiva pobres.

* * * * *

Soneto III

Se pedaços de prisões tenho em meu peito,
é que em sonhos pude vê-las, entreabertas,
dolorosas, vomitando sobre o leito
homens rudes, homens santos e profetas,

falsos doutos, virgens loucas e poetas,
todos mortos, torturados, em pedaços.
Se, de um sono puro e limpo, tu despertas,
meu dever é te amarrar com muitos laços

ao horror da realidade que te espanca,
como história acontecida, ou como estampa
do jornal do dia, pra que não se perca

o grito da mata, do vale, do pampa
e da montanha, onde quer que haja cerca
na América, sangria que não estanca.

* * * * *

Manhãs

A mulher passa,
tão concreta imagem,
tão solar, imersa
em plena manhã.

Pobres manhãs, tão cheias de formulários,
horas marcadas com a sorte.
Jamais tomadas de ócio, manhãs luminosas
que a gente possa mastigar e engolir com gosto,
como faziam os deuses – dizem – antigamente.

E tardes para agarrar a vida à unha,
nossas tardes contempladas
por prisioneiros de vidraças e lâmpadas fluorescentes.
E noites solitárias que não produzem nada
a não ser mais solidão, e manhãs terríveis.

Manhãs terríveis como nós,
quase-modernos prostitutos, todos nós
que contamos a féria do dia
para noutro dia comermos nossas manhãs
com café – bastante café.

* * * * *

Vida Breve

Um lindo jovem fez-se homem.
Fez-se à imagem da razão,
da mais concreta miragem,
mais secreta ilusão.

Fez-se velho e são o homem,
sem bagagem, mais discreto
pajem de si mesmo, irmão
mais correto... a esmo.

Viu-se morto, na garagem,
o homem-cão, sem conforto,
perguntando a si – a ninguém
– se mereceu tal porto: não.

Bobagem, quem se importa,
quem? O cadáver do homem
se entorta em vão. Virá
alguém bater à porta?

* * * * *

Pé-de-Vento

Ventos da primavera
Varrendo a poeira das ruas
Para dentro dos meus olhos
Limpando a cidade os telhados
Erguendo saias distraídas
Poeira e lágrimas em meus olhos
Enchendo de ar meu peito
De sonhos e aromas a cidade
Os telhados e as saias das mulheres
Que fazem sonhar meus olhos
Lambendo o mar furiosos ventos
Da primavera brindando
brincando de desmanchar nuvens
Sonhos telhados e cidades
Nos olhos das mulheres
Varrendo a cidade erguendo saias
Suspirando olhando o mar
Furiosas lambendo lágrimas
Silenciosas correndo dos telhados
Para dentro de meus olhos

* * * * *

Avenida Farrapos

Corre a vida, corre,
pela avenida, vertigem...
Parada a mulher, aflita,
num terceiro andar,
um instante só. Parada,
torce as mãos, aflita – Meu Deus!
O que fazer primeiro?!
Tanto carro, tanta sinaleira,
como não será no inferno?

O avental parado espia
– tão parado – o dia.
Onde vai almoçar tanta gente?
E quem quer saber de minhas desgraças
tão pequenas?...

* * * * *

The Famous Last Words

Nossas últimas palavras ao morrer,
nesta triste guerra suja,
sejam mãe, amor ou pátria,
glória a deus ou satanás;
nossas últimas palavras ao morrer
nesta triste guerra estúpida
serão a última tentativa de fugir
à culpa de não ter tentado dizê-las
durante o resto da vida, tão maior
do que este derradeiro e pífio instante
inadiável: a morte.

* * * * *

Banho de Chuva

Chove de novo,
e sepulta meu pranto
o pranto dos céus.
No vale, os rios se colorem
do tinto sangue das barrancas mortas.

Foge meu canto,
e o encanto perdura:
Sei que o pranto me encharca
a tempo de fazer brotarem os sonhos,
as flores, e estas linhas.

Correm, nas ruas,
as tuas marcas no meu corpo,
as cicatrizes, tudo o mais,
as cargas radioativas, que a chuva leva
de mim, enquanto ando.

Dobram-se as dores
minhas ao choro da chuva, ao grito
do trovão, às cores do arco-íris:
já hei de me tornar a gota,
e a menor poça de lama, a mais rasa.

* * * * *

Farol

Zarpo desta terra
sem rumo, sem fundos, sem nave.
Fujo, a todo pano,
de todos, de tudo o que sei
ser sem esforço.
Vou atrás da calma
que me assaltará, ao morrer
de cansaço aos pés do ídolo
de olhos de fogo: – Liberdade!
Quem te busca assim,
nos apartamentos carpetados, com sacada
e linda vista para as luzes da noite urbana?
Quem te viu, um dia, nos bares,
quem te guarda em mornos lares,
e já não te encontra entre tantos bibelôs
pousados na mesa do abajur?
Quem te pôs no automóvel do ano,
a desfilar na cidade, depois da missa?
Quem te confunde com doze mulheres nuas
e distantes, para sempre incapazes
de ver o sangue que corre
nos versos que inspiraram: – Liberdade!
Quem te deu os tais olhos,
e ainda o par de alvas asas,
se não fui eu, que te gerei do nada
cotidiano e indiferente, para seres
o farol dos meus sonhos todos?

* * * * *

Estudo

Era um sonho, bem sei,
mas era ela, e eu era rei.
Era um sonho, droga!
mas era ela, que não terei
mais em meus braços
por nenhum dinheiro ou droga,
não importa os passos
que darei – que faço?
para alcançá-la.

Quem sabe, então
fique o sonho sendo meu
não refúgio – de que fujo?
mas objeto da ação
que forjo – beijo
que dou na mão
de luz que vem do céu
para queimar
meus lábios sujos?

* * * * *

Não me entendeis, bem sei,
homens que habitam o vasto mundo,
para além dos muros da cidade-deusa.
Mas consolai-vos, sabendo logo
que minha ciência é vã como as palavras,
e que tampouco aqui alguém me entende,
ou se faz ouvir.

Olhais a lua cheia,
torcendo o nariz para meu verso
retorcido. Mas, por favor,
procurai um arbusto retorcido,
e caminhai bastante por uma estrada
torta até o mar revolto,
e lá estarei, dizendo qualquer coisa
sem sentido – como uma nuvem,
por exemplo.

Andai atrás do tempo perdido,
mas sem pressa, como o pianista
procura sem olhos a tecla esperada,
como seus dedos sabem achar sozinhos
o rumo dos sonhos todos;
os da cidade-atena, e os do lado de fora.

Vivei em paz as vossas vidas lineares,
mas sonhai, ao menos sonhai
os sonhos de todos os homens.
E também os dos deuses,
enquanto ainda há deuses e sonhos.

* * * * *

O Alquimista Moderno

Ninguém sabe o que faço, nestas noites.
Sou o feiticeiro cruel, o rei mago
que não foi convidado para assistir
– e nem queria! – ao milagre da manjedoura
na sala de estar, defronte à televisão.

Nestas noites cercadas de cães
que ladram até cansarem os dentes,
do fundo de um poço eu tiro,
envolto em chamas, um demônio
que me guarda de olhares e ouvidos.

* * * * *

O Balanço Final

Pode ser que um dia antes
de morrer eu diga o que foi
esta vida: uma droga pesada,
um sonho breve, suave.
Que eu esqueça de tudo que amei,
que maldiga a sorte de não ter
nascido rei na barriga de alguém.
Mas direi satisfeito, à luz de velas,
foi por causa delas, mamãe.

Eu já sei que um dia depois
da minha queda vou provar do cuspe
na cara, nos olhos que olharam
o mundo de cima, mas também souberam
achar as sombras do mal. E dirão, até,
que fui normal, besta sensual,
que papai não foi além da fase anal.
Oh, matagal dos prazeres, direi:
mamãe, eu fui underground!

Certamente, no dia em que eu morra,
lamente assaz ter sido o que fui,
por não ter me matado, não ter tomado
aquele chope gelado, porra!
naquela tarde. Ou quem sabe desminta
os elogios do padre, o punhado de terra,
ou talvez nem sinta quando passarem
por mim os anjos infláveis do Senhor.
Direi o quê, em minha mansarda, mamãe?

Hoje mesmo, pressinto que a morte
seja mais chata do que eu, em vão,
tentei imaginar, um tédio mortal,
sem sal, mas direi que o mal é menor,
que era bem pior estar sobre o chão.
Sem dó, arrancarei as tripas
do barqueiro, se não me quiser levar.
E nada direi, mamãe, mas cantarei
à mesma voz, no mesmo tom, o que passei.

* * * * *

Ciclo das Ãguas

O dia escorre
por entre os dedos,
e some na água da chuva.
Meus olhos mergulham atrás,
na sarjeta. O dia se foi.
Nas sarjeta do dia,
meu coração escorre,
meu coração se foi.
E agora?

Agora, a noite imita o dia.
Escorre a água dos meus olhos,
mergulha o pranto atrás de ti,
na sarjeta da noite.
Agora te foste com a chuva,
com a noite e o dia.
Com meus olhos, meu pranto, meus dedos,
te foste.

* * * * *

Um Poema Assim

Um poema suave, difícil
de escrever no papel comum.
Um poema cujas letras sairiam da página
voando, feito borboletas.

Um poema cheio de silêncios,
que permitisse reconhecer teus passos
na rua, desde muito longe.
Teus passos vindo, vindo...
Seriam mesmo teus passos?

Poema etéreo, indecifrável
para os adultos, talvez até
para as crianças. Que não fosse óbvio
nem para os passarinhos.
Que não entristecesse nem os fantasmas,
as almas-penadas, as avozinhas...

Poema entreouvido na praça deserta,
à meia-noite. Jamais declamado
em tom solene, em inauguração
de busto de personagem ilustre;
mas murmurado pela folhagem,
ficando pontos e vírgulas a cargo
da coruja, de plantão
no alto da torre da igrejinha branca.

* * * * *

Requiem II

Descansa em paz,
amor perfeito e morto
em parto prematuro,
à luz do dia,
à flor da pele,
ainda em broto.

Descansa em altos mares,
distantes da terra,
das luzes frias
da costa escura,
que não consta
em qualquer mapa.

Amor nascido torto,
falecido jaz, num canto
vazio de praia,
feito nave apodrecida
que não soube achar
seu porto.

* * * * *

Epitáfio

Não, não morrer de repente,
mas sorridente, antevendo, enternecido,
o fogo eterno adiante,
não do inferno, mas de meu pai
o sol, tão esquecido em sua tarefe
árdua, e quase sempre vã
de me tornar alegre o dia.

* * * * *

Caos

Babilônia incendiada aproxima-se
do fim, e transito incólume,
embora pasmo, a cada dia
que sobrevivo. Herói atônito
da era crepuscular presente,
talvez pareça um tanto vampiresco
demais. Mas não sonho à noite:
então, porque dormir?

* * * * *

Bem no Fundo

No fundo de uma agulha
No fundo do copo
No fundo do bar
No fundo do poço
No fundo do mar
No fundo do olho
do outro.

* * * * *

Caos III

Que procuras no espelho
sem trégua
senão
o que não pode nele refletir-se?

Será o sem nome
o não dito
medo completo
da solidão dos homens no caos?

O que não pode ser dito
não pode ser bom
nem mau
não pode ser dito – Que dirás?

* * * * *

Noturno I

Seria, sem medo, um palhaço,
para te encher de riso o caminho.
Ou a chuva, que cobre o traço
do teu pranto, como a terra nua
e todos os desejos ardentes.
Como te cobre o manto da lua,
e as velas que acendo – sementes.

Pergunto: dorme, agora, o carinho,
ou se perdeu no quarto escuro, ameno,
na curva do teu seio moreno?

Ainda, quem sabe, um amigo discreto
seria, um que te compreende.
Não o que aguarda, inquieto,
mas quem sai à caça da aventura
que te interesse. Que não seja
como um cão, doméstica criatura,
um marido repleto de cerveja.

Dorme, agora, o desejo, ou estende
as longas asas mundo afora,
sobre estradas que te levam embora?

* * * * *

Aflição

Às vezes busco as soluções
do problema que ainda não existe.
E mostro a face e triste
da comédia, demonstro que os botões
da tua blusa são novos mundos
descobertos no espaço, tão longe
deste planeta, por um monge
de graça e saber profundos,
que habita em mim um claustro
ínfimo da mente. Só quando dorme,
à noite, o religioso, é que o mastro
desta nave some no horizonte informe
dos teus passos. Só quando esqueço
da distância em que te escondes
– somente uma, mas sem preço –
é que eu grito. Não respondes.

* * * * *

Passeio

É quase primavera
Há quase tantas mulheres nas ruas
Quanto estrelas no céu de Porto Alegre
Qual me fará sofrer agora?

Quase não me lembro mais
Da última vez em que quase morri
Quase fomos felizes para sempre
Que me prepara o destino agora?

Ando quase satisfeito
Sob o sol, quase embriagado
Andei já por quase toda a cidade
Atrás de quem irei andar agora?

* * * * *

Nosso amor

Atirei nosso amor pela janela
do oitavo andar, pela oitava vez,
para ver se parava de chorar.
Só duas horas depois, ou três,
pouco antes do jantar, talvez,
fui me lembrar: coitado,
caiu no parque ao lado,
bem no meio do playground.

E lá estava nosso amor
esborrachado, interrompendo o tráfego
no escorregador, meio de lado,
um olho vazado, o outro frio
a me fitar. E supliquei:
– Oh, gatinho, não ligue,
isso tudo é paixão, vê se vive,
podemos ser felizes!

Perplexo, nosso amor sorria,
morria pensando: muito tarde,
que ironia, e não pelo sexo, ferida,
é que sofria. Mas chega
de ser gato, bicho chato,
passar fome... E Deus ajude,
noutra encarnação, querida,
eu nasça homem...

* * * * *

Fausto

Despem-se de asas e auréolas
os meus anjos da guarda.
Desfazem-se as nuvens douradas
que os sustinham, e o céu
se parte ao meio. Caminham
meus dias para a morte,
e sobre eles chovem as noites
cheias de demônios amarelos.

Disparam as naves do inferno,
de seus canhões vermelhos,
contra mim todo o dejeto
dos homens, aquilo que mereço
e quis, o que há de podre,
abjeto: preço do sonho infeliz.

De tanto crer em mim mesmo,
nesta fome feroz e insone,
fui achar o vazio, o sem nome,
espelho mágico que me espera
no trágico morrer de meus amores.

* * * * *

Soneto IV

Dá-se um passo, um a mais, é o que basta:
de um sentimento tece a teia, do mais fino,
discreta e negra, a aranha do destino.
Ao passar, a verde menina, tão casta,

ajuda os meus olhos a carregarem
consigo um sonho, ou dois, que não conhece.
Cedo ou tarde, ela desaparece,
e ainda inconsciente, fez ficarem

mais tristes os olhares, as paredes,
sombrias as manhãs, e muito frias
as estrelas – claro que por poucos dias.

Dá-se um passo, ou dois, cai-se nas redes
da vida. E muitas outras, à janela,
verei passar: Nenhuma igual àquela.

* * * * *

Soneto V

Caem, sobre mim, pesadas horas.
Sobre o macio veludo carmim,
desabam dos prédios, muros sem fim:
quem dirá por que razão demoras?

O sentido ausente espero, e quanta dor
encerra o não ser nada, mas somente
o tempo que se esvai, tempo presente:
da razão espero o retorno, e do amor.

E como adias a volta, eu protelo
o adeus inevitável, o que pode ser belo:
renúncia de toda ânsia, que nos cansa,

e espelho da solidão. Neve e gelo
que não foste — Não queremos sê-lo!
E assim prossegue a mais antiga dança...

* * * * *

Soneto VI

Porque insistes no soneto estreito,
ó insano poeta? Muda a rima,
torce o teu lindo verso, já feito,
e entorta o teu metro ruim para cima.

Lá, onde cantam nuas as musas,
e as transparentes fadas sem nome,
lá se aboliu esta forma que usas.
Os tempos são outros, é grande a fome

no mundo, e escravizas sem motivo
teu sonho agonizante, teu olhar furtivo,
a catorze versos cheios de poeira.

Dirás, é certo, que as dores novas
são sempre a mesma. Mas nunca provas
que a vida não é uma brincadeira.

* * * * *

Doce Orgulho

Daqui te foste, insensata aparência,
para me deixar insone, e teu seguro
leito, e bem guardado, te acolheu.
Insano amor, inclemência:
carrego tijolos para um muro
erguer, ou o muro erguido sou eu?

Melhor comê-los, com capim,
do que acalmar tua insegurança
– puro temor dos ventos que ensurdecem.
Vês, do cais, outro naufrágio de mim
no incerto mar da esperança,
e nem mesmo teus olhos estremecem.

Ingrata flor, doce arrogância
que com beijos reguei, um dia
– hoje, com pranto. Maldito orgulho
que desperta em ti minha constância:
só torna tua voz mais fria,
e mais triste o silêncio em que mergulho.

* * * * *

Porto Alegre

Porto: alegre, mas não sem dor.
Que da água extrai o sustento.
Atrai do sertão os famintos,
e do mar os viajantes molhados.
Onde a gente vem se despedir
das ondas, da terra, da vida.
Donde se atiram, sedentos de mar
os errantes, e os suicidas noturnos.
O horizonte se abre sempre mais
para quem parte, e a água se fecha
a seguir sobre o morto que afunda:
que resta do porto agora
que o alegre encanto se foi?

* * * * *

Mergulho no fluxo irresistível da vida,
deixando para trás todo pensamento,
e não o faço em meditação profunda,
em minha solitária morada.
Dirijo um automóvel, ou colho rosas;
no metrô, beijo um homem suado,
e desapareço entre as pernas
de uma bailarina, no cabaré suburbano
que amanhece bêbado.
Quero fazer as coisas
como elas querem ser feitas,
depondo as armas ante a ordem
preexistente, hoje enfim tornada viva
em teu corpo perfeito.

* * * * *

Pureza

Quisera ser outro homem,
que não fosse louco por ti.
Mas louco não seria, de não querer
que me quisesses ainda um pouco.

Mas, se quiseres ser quem não és,
não serás então a mulher que quero.
Não a que eu quero que tu sejas,
mas a que desejo que seja minha.

* * * * *

Flash II

Movem-se em bando, as mulheres,
noite adentro – ou afora?
Por dentro e por fora de mim.
O centro de mim mora nelas,
por agora, só um instante.
Serei, enfim, mais que um amante
ruim de cama, embora o fim
de tudo seja somente a lama
– por fora como por dentro –
ou é o efeito estonteante de uma Brahma?

* * * * *

Flash III

Então a ti, que te orgulhas
de me haver conquistado
por uma noite, direi
que me conquistaste pela vida
inteira, ou despedaçada.

Irá caber agora em ti o orgulho?

* * * * *

Mesa de Bar II

Trocam tiros
Nos bares
Crianças doentes
Olhares ausentes
Quase um brinquedo

Não se encontram
(tanta gente)
Não se tocam
Será que acreditam
No que vêem?

Tudo foge
Rumo ao amanhã comum
Que por sua vez foge
Em direção ao nada comum
Tédio comum

O tédio é de todos
Como a solidão
Assim como o nada
O amanhã é de todos
os que trocam tiros

* * * * *

Entre um Gole e Outro

Afoga os desejos, imagina os beijos
em cerveja embebidos, raciocínios curtos
e circulares, que anunciam a nova década
– e também a próxima ampola cheia.

Esvazia os copos, com avidez,
porque logo a noite é morta:
as estrelas caem de bêbadas,
e os lobos se recolhem insatisfeitos.

* * * * *

Navio Fantasma

Do fundo do mar
Do fundo da noite imensa
Da selva imensa em torno
Vêm gritos distantes
Gargalhadas
Sons de rádio e automóveis
Ruído de passos ligeiros
Vozes inquietas
Flautas
E gente cantando

Do fundo do mar
Das madrugadas sem fim
Dos bares anônimos
Vêm todos os sons
Dos abismos humanos
Cada um traz consigo
Uma emoção
Cada emoção
Pousa em silêncio
Na janela do meu quarto

Apavorado eu sigo um rumo qualquer
E navego para não enlouquecer

* * * * *

Espelhos

Outra noite
A mesma paisagem
Outra chuva
O mesmo silêncio
Outro amor
A mesma sede
Outro olhar
Sobre as mesmas coisas

O mesmo dia
Outra janela
O mesmo sol
Outra canção
A mesma dor
Na fome dos outros
O mesmo olhar
Sobre outras coisas

* * * * *

Soneto VIII

Em torno a mim, bailando
vêm as amadas mortas, queridas,
e as esquecidas, ainda agora tentando
em mim prolongar suas vidas.

Por um nada não fomos felizes,
dizem umas, e logo ao meu pescoço
se lançam. Outras, de empinados narizes,
me acusam: "– Já não parece tão moço..."

E dançam, com vontade, as musas
de outrora, com escárnio ou ternura.
E logo a elas se juntam, confusas,

outras tantas lembranças, em tal mistura
de louras, negras, índias e cafuzas,
que já não sei meu coração o que procura.

* * * * *

Soneto IX

Parte hoje, em hora incerta,
por sobre o mar, rumo à França.
Deixa a cidade mais deserta,
e muitas saudades como herança.

Parte hoje, e os jornais não trazem
nada sobre o caso, nada a respeito
dos motivos ocultos que fazem
nascer e morrer os afetos, no peito

de toda a gente. Ela parte,
por sobre o mar, e quem garante
que existe algo em França, em Marte,

algo mais que a dor do instante
da partida, algo além da arte
de ouvir a voz que grita: – Avante!

* * * * *

Soneto X

Em vão se esmera o humano poeta
em conquistar sua musa intangível:
não há nada tão impossível
quanto tornar a divindade concreta.

Em vão a musa lhe oferece
todo o necessário, o sofrimento
e a glória, e um sortimento
completo das emoções de que carece.

Ingrato, ele quer sempre aumento,
muito além do que merece.
Quer a vida mais completa.

E em meio à tempestade que padece,
não consegue recusar o alimento
que lhe oferece a deusa insensível.

* * * * *

Soneto XI (Zusammensein)

Há pouco estávamos juntos você, eu
e o apanhador, no campo de centeio.
Ele sentado entre nós, no meio,
e então, onde foi que se meteu?

Ou teria sido num imundo café
suburbano, que se deu o fato?
Éramos três no balcão, em pé:
você, eu e um misterioso gato.

Mas quem sabe eu não tivesse
entendido bem que lugar, enfim,
era aquele onde, além de mim,

havia você e algo que se pudesse
fazer sumir quando quisesse,
dizendo a palavra mágica: – sim!

* * * * *


20/12/1992

 

 


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